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Curadoria de artigos de UX, Visual e Product Design.

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Design como atitude na era da tecnologia

Gabriel Simões
UX Collective 🇧🇷
8 min readMar 3, 2025
Imagem da sombra de uma árvore, uma pessoa sentada em um banco e um gato projetada em um muro texturizado amarelo.
Benjamin Wolf

[ALERTA DE REALIDADE]

“Nenhum designer pode se dar ao luxo de ignorar a necessidade de avaliar a sustentabilidade ambiental e as consequências socioeconômicas de todos os aspectos de seu trabalho.

Não há mais dúvidas quanto à fragilidade dos ecossistemas que nos restam.”

— Alice Rawsthorn.

Senta aqui, designer. A gente precisa conversar.

Estamos caminhando a passos largos pra um futuro — no mínimo — complicado. Ondas de calor, catástrofes ambientais, desigualdade social, fascismo escancarado e falta de alternativas pra sair desses e de muitos outros problemas complexos.

O tempo parece estar acabando, mas espero que você, assim como eu, esteja pronto ou pronta pra lutar até o último momento.

E o design pode ser nossa ferramenta nessa luta.

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Um sistema em crise

Quero te apresentar a ativista social britânica Hillary Cottan.

Ela é considerada uma das pioneiras do design social e foi nomeada Designer do Ano do Reino Unido em 2005, por sua metodologia que mistura antropologia, psicanálise, marketing, ferramentas de negócios e design.

E bom, é a palavra dela que quero compartilhar com você hoje. Mais especificamente, as ideias que tão dentro do manifesto Welfare 5.0: Why we need a social revolution and how to make it happen, publicado em 2020.

Nele, Hillary expõe a crise do sistema atual e sugere maneiras de contornar esses problemas.

“Nossos sistemas sociais estão em crise, não só porque não conseguem lidar com o sofrimento moderno, mas também porque estão profundamente conectados aos sistemas econômicos, políticos e ecológicos, que também enfrentam problemas.

Isso pode parecer óbvio, mas até agora, os desafios dentro dos nossos sistemas sociais foram subestimados.

Muitas vezes, a forma como esses sistemas são influenciados por escolhas políticas e econômicas mais amplas é deixada de lado nas análises.

Para investir de forma eficaz, precisamos primeiro entender as crises internas e externas.”

— Hillary Cottan

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Crises internas

Nosso foco aqui é a sociedade em si.

E uma coisa é fato: o sistema de bem-estar social atual não cuida de todo mundo como deveria.

Isso porque ele foi projetado de uma forma que deixou muita gente de fora e, em muitos casos, se sustenta na exploração de pessoas menos favorecidas.

Muitas delas não têm chances de melhorar sua vida, o que gera sofrimento e um ciclo de problemas difíceis de consertar depois — e que se multiplicam exponencialmente.

Quem trabalha nesse sistema sabe que ele não funciona direito pras necessidades de hoje. As pessoas não conseguem manter uma boa saúde em lugares insalubres, as escolas não estão preparando bem as crianças pro futuro e os idosos não recebem o cuidado que merecem.

Pra mudar isso, a gente precisa redesenhar completamente esse sistema, criando algo que funcione melhor pra todas as pessoas e que fique mais forte conforme for usado, se adaptando aos cenários futuros.

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Crises externas

Agora, vamos focar na tecnologia.

Ela tá criando novas formas de riquezas e certos avanços, mas também novas formas de pobreza e, de certa forma, regressos ou novos problemas. Ah, e vale dizer também que, pra crescer, a tecnologia depende de processos insustentáveis que exploram o meio ambiente e as pessoas.

Dito isso, a gente precisa começar a ver a tecnologia de forma mais integrada com as mudanças sociais. Não dá para pensar nela só como algo que vai melhorar a educação ou outros setores isolados. As revoluções tecnológicas trazem novas formas de dinheiro, instituições, políticas e normas sociais.

Vale pontuar que a tecnologia também influencia as mudanças culturais e sociais. Ela cria novas formas de viver e novas aspirações, o que nos leva a repensar coisas que já dávamos como certas.

Resumindo, temos duas grandes chances agora:

  • Usar os recursos gerados por essa revolução tecnológica — dinheiro, conhecimento e inovação — pra criar um sistema mais justo, que inclua quem sempre ficou de fora ou foi explorado no passado; e
  • Entender que investir em bem-estar social não é um gasto, mas sim um investimento necessário pra que novas tecnologias e modelos econômicos realmente funcionem.

Ou seja, a gente precisa parar de tratar os problemas das pessoas e da tecnologia como se fossem partes separadas, sem levar em conta que tudo tá conectado.

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Os princípios de design pra uma nova sociedade

“Criar novos sistemas exige um ‘padrão de design’— um código social que oriente a criação e a transformação coletiva. Nos anos 40, o Relatório Beveridge forneceu um modelo para a criação do estado de bem-estar pós-guerra. […]

Hoje, esse tipo de abordagem centralizada e padronizada já não funciona, pois não consegue lidar com os desafios modernos ou criar as relações necessárias para o crescimento.

Precisamos de um novo tipo de padrão, mais parecido com um código digital, que nos forneça a linguagem, as ferramentas e os princípios para criar esse novo design.”

— Hillary Cottan

Esse novo código social é baseado em cinco princípios centrais.

De acordo com Hillary, esses princípios foram moldados ao longo de 20 anos de ações locais, conversas e aprendizado entre pares.

Inclusive, vale lembrar que a forma como eles vão ser aplicados e interpretados fica aberta ao conhecimento local, aos recursos disponíveis e às circunstâncias do momento.

Design também é adaptação, certo?

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1. Pense em seres humanos inteiros e conectados

O sistema atual vê as pessoas como indivíduos separados, focados em resultados isolados, como notas ou custo-benefício.

E essa visão precisa mudar.

Precisamos de um novo modelo, onde as pessoas são vistas como seres inteiros, conectados, com suas qualidades e falhas. Em vez de focar apenas no sucesso individual, precisamos valorizar as relações humanas, que nos permitem crescer e prosperar.

Pesquisas mostram que a conexão entre as pessoas que faz com que todos se desenvolvam, assim como as raízes das árvores que se conectam para crescer juntas.

“Todo padrão de design tem um ser humano imaginado no centro — um molde de vestido, por exemplo, é baseado no corpo humano.

O modelo atual do estado de bem-estar social também foi construído com uma visão específica de ser humano em mente: o homo economicus, um indivíduo solitário, calculista e competitivo, visto como movido por um desejo incessante de maximizar seu potencial material e individual.”

— Hillary Cottan

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2. Desenvolva capacidade

A gente não pode mais continuar investindo em sistemas sociais que só tentam consertar as pessoas quando elas tão “quebradas”. Isso é caro e difícil — visto e aprendido durante as últimas décadas, pelo menos.

O ser humano é feito para crescer, se curar quando necessário e sempre se desenvolver.

Logo, os sistemas sociais precisam ser feitos pra apoiar esse processo natural de regeneração.

“Capacidade é tudo aquilo que podemos fazer ou nos tornar. Também representa nosso potencial — aquilo em que podemos crescer com o apoio certo.

Para prosperar hoje, precisamos do suporte das conexões humanas e da oportunidade de aprender, participar de trabalhos com propósito, manter corpo e mente saudáveis e cultivar relações íntimas e sociais.”

— Hillary Cottan

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3. Invista numa economia social

Os novos sistemas tão ligados a uma nova forma de pensar a economia e as políticas sociais.

Primeiro, eles reconhecem que a economia e as políticas sociais dependem uma da outra e precisam ser planejadas juntas.

Depois, essa nova forma de entender a economia oferece ferramentas e modelos pra o que chamam de “Economia Social” — novas formas de governança, medição e investimento que podem ajudar a criar e fazer crescer esse novo sistema social.

“Desenvolver capacidades exige recursos, mas, por décadas, uma verdadeira reformulação dos nossos sistemas sociais foi descartada com base em uma visão econômica tradicional.

Essa visão trata os sistemas sociais como um custo de curto prazo, em vez de um investimento de longo prazo, e como um peso, em vez de uma base para o desenvolvimento e o bem-estar.”

— Hillary Cottan

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4. Apoiado por instituições horizontais e em rede

A mudança social acontece quando as pessoas se unem de forma mais colaborativa, criando novas formas de organização e liderança.

Ao contrário das instituições antigas, que eram feitas pra distribuir coisas em massa — como medicamentos e conselhos, as novas instituições são feitas pra gerar, facilitar e estimular cenários melhores e mais positivos pra todo mundo.

Elas têm fronteiras flexíveis, o que permite novas parcerias e horizontes. Esses novos modelos de organização crescem por meio da cooperação, e não de um modelo industrial e engessado, como os atuais.

“Os sistemas sociais que herdamos foram criados com base nas melhores práticas de sua época — são organizações hierárquicas, verticalmente integradas e centralizadas.

No entanto, esse modelo organizacional se mostra frágil diante dos desafios do mundo atual.”

— Hillary Cottan

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5. Faça na prática

O ato de criar é importante porque quebra hierarquias de conhecimento que limitam a mudança social.

Atualmente, algumas áreas de conhecimento — política e economia, por exemplo — são muito valorizadas, enquanto outras, como experiências de vida, são deixadas de lado.

Isso acaba colocando o pensamento sobre a ação prática. Criar exige várias áreas de conhecimento, como antropologia, arte, design, ciências, história e muitas outras, sempre com foco no contexto.

Resumindo: precisamos integrar experiências reais em nosso processo de criação. E, colocando em prática, aprender e aprimorar sempre que necessário.

“O design é sobre criar, e todos nós somos convidados a ser designers agora — construtores, participantes e criadores de nossos sistemas sociais.

Sabemos, por exemplo, que a saúde não é algo produzido em massa em um hospital, mas uma capacidade que desenvolvemos com o apoio de bairros bem planejados, amigos, família e profissionais.

Da mesma forma, aprendemos que o conhecimento não pode simplesmente ser entregue e avaliado por testes; ele é uma habilidade de investigação que precisa ser adquirida e constantemente exercitada, às vezes sozinho, outras vezes em boa companhia e trabalho em equipe.”

— Hillary Cottan

Pra fechar

Pra que toda essa mudança aconteça, Hillary descreve quatro grupos ou perfis de pessoas necessários, cada um atuando em uma camada específica da sociedade:

  • Intelectuais orgânicos: pessoas que conseguem criar novas ideias que inspirem imaginações globais em várias áreas, como ciência, design, história, economia e antropologia.
  • Sociedade civil organizada: artistas, ativistas, sindicatos e outros que trazem criatividade, conhecimento e, principalmente, a experiência vivida de formas alternativas de viver.
  • Novos industriais: líderes de negócios que, seguindo os passos de visionários do passado, desafiem seus colegas, acreditando que uma nova era só é possível com a criação de novos sistemas sociais e novas normas para o trabalho.
  • O Estado: uma nova geração de líderes dispostos a criar novas alianças e desenvolver novos modelos e estruturas.

“No fim das contas, a crise que estamos vivendo pode ser a oportunidade perfeita para mudar a forma como vivemos, corrigir injustiças e cuidar melhor do planeta.

Mas isso só vai acontecer se tivermos um propósito claro, uma visão de futuro e um plano para tirar essa visão do papel.”

— Hillary Cottan

Espero não ter te assustado com o alerta no início do texto. Acredito que ainda dá tempo, só não sei quanto tempo vai durar esse “ainda”.

Ah, e concordo com a Hillary: precisamos de uma revolução social.

Mas, enquanto isso não acontece, podemos fazer nossa microparte pra que alguma microcoisa no mundo mude.

Como já disse em outro artigo, o importante é ser uma pessoa crítica quanto ao potencial que nosso trabalho tem de ser uma frente de apoio para uma sociedade mais justa, sustentável e igualitária.

Aliás, você se encaixa em algum dos grupos ali de cima? Conta aí!

Se quiser conversar sobre esse ou outros assuntos, comenta aqui ou me chama! 😁

Aquele abraço!

Referências

Written by Gabriel Simões

Engenheiro e designer. Pós-graduado em UX. Falo sobre design e sociedade na UX Collective e sobre design conversacional na Bots Brasil.

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