Design: da Bauhaus à era digital

Um breve histórico sobre design, política e sociedade pra UX designers.

Gabriel Simões
UX Collective 🇧🇷

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Uma pintura digital retratando uma sala colorida, com sofá, quadros, mesa de centro, poltrona e uma estante pequena com um abajur em cima, além de uma cortina colorida ao fundo.
Pamela Jaccarino

Acredito que minha formação como profissional de UX deve ter sido parecida com a de muitas outras pessoas: cursos com fórmulas, processos e fluxos de design bem definidos, reverência à dupla Nielsen&Norman e um apelo ao retorno financeiro do negócio como fator de sucesso do processo de design — além de uma boa usabilidade, claro.

E, de fato, não tá errado. Mas UX é design e design tem um punhado de história e contexto antes da “criação” dos termos “usabilidade/design thinking” e desse apelo econômico gritante de hoje em dia.

Inclusive, me pergunto porque não tive aula de “história do design” na graduação em Design Gráfico. Tive “história da arte” — muito pertinente, diga-se de passagem —, mas por que não falar também do passado do design? De como ele e a sociedade foram se moldando mutualmente ao longo da evolução humana, assim como na arte?

Essa relação é muito importante. Ainda mais em uma época que design e política são colocadas como água e óleo — inclusive, se você acha isso ou não tem uma opinião formada, fica aqui que esse texto também é pra você.

Pensando em ajudar a preencher essa lacuna na formação de quem faz design, deixo aqui minha humilde contribuição. Afinal, a gente precisa conhecer o passado pra não repetir erros no futuro, certo?

Te convido, então, pra uma viagem no tempo a fim de entender o caminho que o design percorreu até a chegada da profissão UX. Ah, e claro, conhecer outros designers que podem ensinar muito sobre nosso trabalho — e te ajudar a sair do eixo Nielsen-Norman.

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Nossa linha do tempo

“Os primeiros designers, os quais têm permanecido geralmente anônimos, tenderam a emergir de dentro do processo produtivo e eram aqueles operários promovidos por quesitos de experiência ou habilidade a uma posição de controle e concepção, em relação às outras etapas da divisão de trabalho.

A transformação dessa figura de origens operárias em um profissional liberal, divorciado da experiência produtiva de uma indústria específica e habilitado a gerar projetos de maneira genérica, corresponde a um longo processo evolutivo que teve seu início na organização das primeiras escolas de design no século 19 e que continuou com a institucionalização do campo ao longo do século 20.”

- Rafael Cardoso, em “Uma introdução à história do design”.

A profissão “designer” começou a aparecer oficialmente na Inglaterra do século XIX (19), mas, desde o século XVII (17) e as primeiras etapas da industrialização europeia, o design pode ser visto como aliado na manufatura e produção em massa de diversos produtos.

Inclusive, durante esses 3 últimos séculos, tivemos algumas visões e definições sobre design. E claro, elas variam conforme a época e cultura em que eram contextualizadas. E entender essa relação, inclusive atualmente, pode ajudar a projetar um futuro melhor pra gente mesmo.

Segundo o doutor em design João de Souza Leite, podemos dividir a história do design recente em algumas vertentes, como por exemplo:

  • o design suíço-alemão do pós-guerra, dos anos 1950, relacionado ao design alemão desenvolvido na Bauhaus e sistematizado na cidade de Ulm, em sua Hoch schule für Gestaltung (Escola Superior da Forma);
  • o design inglês, originado nas questões impostas pelo advento das então novas tecnologias e da nova organização do trabalho e da produção durante a [primeira] revolução industrial do século XVIII (18); e
  • o design americano, em parte derivado do inglês, comprometido com a ampliação da escala da produção e do consumo, de olho no consumidor, com o inequívoco compromisso com o lucro;
  • o design dos países nórdicos, da Escandinávia, fruto do cruzamento de ofícios artesanais e produção em escalas mais contidas.

Mas, nesse pequeno estudo de história, vamos nos ater a 3 eventos específicos do último século: a influência da escola de design Bauhaus (1919–1933), a terceira Revolução Industrial (~1950–1970) e a era digital (a partir de 1990).

Um infográfico com as seguintes informações: Linha do tempo do design (resumido): 1919–1933 Bauhaus —  A primeira escola de design do mundo atravessou guerras, levantou ideologias e deixou um legado controverso. Um mundo recém recuperado da segunda guerra mundial e o mercado focado no marketing. Tecnologia bombando. Também, as primeiras escolas de design do Brasil. ~1950–1970  Terceira Revolução Industrial Internet, produtos digitais, inteligência artificial, concorrência entre marcas…
Feito no Canva. Imagens usadas: Pinterest.

1 — Bauhaus (1919–1933)

“O legado da Bauhaus para o campo do design é um tema bastante complexo. Seria injusto pensar as atividades da escola e dos seus integrantes fora do contexto tumultuado da Alemanha entre as guerras, um período marcado pela exacerbação contínua de conflitos de importância visceral para a evolução material e espiritual do século 20.

Naquele momento, a própria sobrevivência da Bauhaus foi um ato de implicações políticas dramáticas, e até certo ponto heróicas.”

- Rafael Cardoso, em “Uma introdução à história do design”.

Reconhecida como a primeira escola de design do mundo, a Bauhaus é um caso à parte quando o assunto é contribuição ao design e à sociedade. E muito disso se deve ao contexto histórico em que estava inserida: imagina promover e aplicar o design em uma época de ascensão fascista. Não à toa que a escola era vista também como motivo de polarização ideológica, até seu fechamento pelo partido nazista em 1933.

A ideia não é entrar em detalhes quanto à história da instituição de ensino — embora eu indique o estudo sobre — mas entender como ela influenciou nossa profissão. Por isso, vamos falar sobre a relação forma-função, ou “funcionalismo”:

“Contrariando a vontade de alguns de seus idealizadores, a Bauhaus acabou contribuindo muito para a cristalização de uma estética e de um estilo específicos no design: o chamado ‘alto’ Modernismo que teve como preceito máximo o Funcionalismo, ou seja, a ideia de que a forma ideal de qualquer objeto deve ser determinada pela sua função, atendo-se sempre a um vocabulário formal rigorosamente delimitado por uma série de convenções estéticas bastante rígidas.”

- Rafael Cardoso, em “Uma introdução à história do design”.

Quando o autor diz que os idealizadores da escola foram contrariados é porque, segundo ele mesmo, “para a maioria dos que participaram [da Bauhaus], o significado maior da escola esteve na possibilidade de fazer uso da arquitetura e do design para construir uma sociedade melhor, mais livre, mais justa e plenamente internacional, sem os conflitos de nacionalidade e raça que então dominavam o cenário político.”

E sim, a Bauhaus acabou sendo ponto de reunião e refúgio pra pessoas artistas, arquitetas e designers do mundo todo na época. E, dentre essas pessoas, muitas de renome e influenciam o design até hoje (imagem abaixo).

Mas claro, essa pluralidade de pensamentos e origens também trouxe embates internos e trocas de posições estratégicas frequentes, ainda mais pela xenofobia e racismo da época.

Compilado com todos os desenhos de professores da Bauhaus, publicado no Instagram de Diego Piovesan e também no artigo “Os Mestres da Bauhaus: 100 anos de um legado de inclusão, ideais e design.”

Por mais que tenha durado apenas 14 anos e seja alvo de críticas por parte de algumas pessoas, a Bauhaus é um lembrete importante sobre a influência do design na sociedade e que o design é, sim, político.

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2 — Terceira Revolução Industrial — ~1950 até 1970

“Um dos fenômenos mais notáveis do pós-Guerra tem sido o império das grandes empresas multinacionais. A impressionante expansão dessas empresas para além das fronteiras nacionais de suas matrizes decorre de uma política consciente de internacionalização econômica, desenvolvida desde a década de 1940 para coordenar a recuperação e futura operação da economia mundial.”

- Rafael Cardoso, em “Uma introdução à história do design”.

O fim da Segunda Guerra Mundial deu início ao capitalismo como vemos hoje em dia. Multinacionais se expandindo, desigualdade social aumentando, o design ali em meio ao marketing e a busca do lucro acima de (quase) tudo.

Frente a essa expansão, o design no Brasil se consolidava como disciplina e profissão. Poizé, o design em nosso país tropical e bonito por natureza “nasceu” nos anos 50, com a IAC:

“O Instituto de Arte Contemporânea (IAC) do MASP foi a primeira escola de desenho industrial [design] do Brasil. Inaugurada em 1951, com a exposição de obras do artista suíço Max Bill, a escola reuniu grandes nomes. Entre seus professores estavam Lina Bo Bardi, Pietro Maria Bardi, Jacob Ruchti, Oswaldo Bratke, Roger Bastide, Flávio Motta, entre outros. Lá estudaram alguns dos que formariam uma geração de importantes designers modernos brasileiros, entre os quais Alexandre Wollner, Emilie Chamie, Estella Aronis e Ludovico Martino.”

— Sinopse do livro “IAC: Primeira escola de design do Brasil”, de Ethel Leon.

Entretanto, pra algumas pessoas, o design no Brasil teve mesmo início com a ESDI — Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1963.

De qualquer forma, foi uma época muito frutífera pro design brasileiro, embora agora sabemos que fomos influenciados por diversas linhas de raciocínio sobre design na época — e ainda somos.

Além dos nomes já citados, Aloísio Magalhães, Joaquim Redig, Lucy Niemeyer, Pedro Luiz Pereira de Souza e Walter Carvalho também influenciaram fortemente a definição que temos hoje sobre nossa profissão.

Aliás, acho interessante também dizer que foi uma época de muito ativismo por parte do design gráfico. Muitos movimentos populares se apoiaram no design ao redor do mundo pela reivindicação de direitos — falo sobre alguns nesse outro artigo aqui.

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3 — Era digital e UX — 1990 até dias atuais

“Por um lado, a difusão mundial do modelo consumista americano significa que a perpetuação do sistema produtivo atual depende da expansão contínua da produção e do consumo. […]

Por outro lado, o mesmo ímpeto consumista que mantém o sistema em funcionamento é responsável pelo agravamento constante dos problemas ambientais, o que dá a sensação de estarmos vivendo em cima de um vulcão ativo, conscientes de que a qualquer momento poderá sobrevir a grande explosão que nos destruirá.

Talvez o maior dilema para o designer na pós-modernidade resida no fato de se encontrar justamente na falha entre essas duas placas tectônicas, do mercado e do meio ambiente.”

- Rafael Cardoso, em “Uma introdução à história do design”.

Ok, aqui acho que o design de fato virou produto — digital e econômico, no caso. O compromisso primordial com o lucro ganhou ainda mais palco e holofotes e isso entrou na conta da formação do designer. Soma ainda a obsolescência programada, crises econômicas, sociais, ambientais… na verdade, nada de novo.

Claro, o lucro é importante. Mas o lucro pelo lucro tá levando a gente aonde? No artigo “Design: responsabilidade social no horário do expediente”, Joaquim Redig diz:

“Sim, estamos aqui para desenhar para a indústria, mas vamos dedicar nosso tempo, nosso cérebro, nosso talento, e a estrutura tecnológica, econômica e social onde estamos inseridos, para resolver os problemas do consumidor brasileiro, para atender às suas necessidades materiais, ou seja, para desenvolver novas ideias, criar novos produtos, dirigidos ao seu contexto. A isso serve essa profissão, não apenas para mudar a decoração externa, como fazem os estilistas […]

Nossa função (ou missão) na sociedade produtiva é ir bem mais fundo, o mais fundo possível — como disse George Nelson, um dos mais importantes designers e teóricos do design estadunidense: ‘ao colocar qualquer limite em seu campo de responsabilidade, o designer estará limitando também o seu potencial.’”

O problema é que parece que a história foi apagada um pouco antes da era digital e começamos “do zero” a partir da concepção do termo “UX” design e uma nova era de foco na pessoa usuária, processos prontos e retorno econômico imperativo.

Mas UXer, você faz parte de um movimento muito maior e bem mais vivo do que você imagina. E, nisso tudo, cada decisão é política e importante. A ética e preocupação com o todo, hoje, são primordiais — deveriam ser sempre, mas sabemos da realidade.

Ainda no mesmo artigo, Redig conclui que “enquanto as melhorias sociais não forem realizadas no expediente, na produção e no comércio, não haverá verdadeiras melhorias sociais. Enquanto nos ocuparmos apenas dos sintomas da doença, esquecendo as causas, não teremos saúde. E o Design é um componente indispensável à reversão desse quadro.”

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“E agora, José?”

O design de hoje é fruto de muitos acontecimentos sociológicos e políticos, e tá sendo construído no momento em que você lê este texto. Ou seja, você pode se posicionar e ocupar com orgulho seu papel como designer e ativista por um futuro melhor. Ou pode sentir que já tá tudo certo mesmo. Vale ter em mente que o design sempre viveu dividido entre:

  • pessoas que não querem se envolver com questões sociais: “prefiro sentar na minha cadeira, só fazer o meu trabalho e ir pra casa”; e
  • pessoas que querem contribuir de alguma forma com a sociedade: “prefiro sentar na minha cadeira, contribuir (dentro do meu poder de influência) pra uma sociedade melhor durante o expediente, e ir pra casa”.

E as duas pessoas tão certas e dentro de seus direitos. Mas podemos concluir que esse mesmo trabalho, feito pelas mesmas duas pessoas, teriam resultados completamente diferentes. Inclusive, não se posicionar também é um posicionamento, tá? Felizmente pra algumas pessoas, infelizmente pra outras, fazer design é se posicionar o tempo todo.

Lembrando que: ninguém é obrigado a nada.

Daqui a alguns anos, outras pessoas vão estudar nossa época e tirar as próprias conclusões sobre a atuação e contribuição social da nossa geração de profissionais de design pra história do Brasil e do mundo.

“Se existe um país carente de sistemas de organização coletiva, clareza da difusão de informações, de planejamento estratégico da produção, de soluções criativas para problemas aparentemente insuperáveis — enfim, de projeto — este país é o Brasil.

Como atividade posicionada a intuição e a razão, a arte e a ciência, a cultura e a tecnologia, o ambiente e o usuário, o design tem tudo para realizar uma contribuição importante para a construção de um país e mundo melhores.”

- Rafael Cardoso, em “Uma introdução à história do design”.

E a pergunta que fica agora é sobre que design vamos deixar de semente pro futuro: aquele que move exclusivamente a economia ou que também cuida da sociedade?

Se quiser conversar sobre esse ou outros assuntos, comenta aqui ou me chama!

Aquele abraço.

Referências

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Engenheiro e designer. Pós-graduado em UX pela PUCRS. Acredito que o design pode melhorar o mundo.