Ensaio sobre um design socialmente engajado
O design tem o poder de criar utopias. Precisamos resgatar isso.

Enquanto estudava e buscava referências pra escrever o artigo “‘Design social’ é pleonasmo”, percebi que só um texto pra esse assunto não seria o suficiente.
Por isso, aquele é um artigo introdutório e mais conceitual e este é um “mergulho” reflexivo no tema. Ou melhor, um ensaio.
O design e a sociedade
“Imagina o que seria possível se os designers não participassem da exportação do consumo excessivo e do cumprimento desenfreado da cobiça.
Ninguém entende melhor o mecanismo poderoso por trás dessas manipulações do que os profissionais de design, e nós temos a criatividade e a persuassão para fazer uma mudança positiva.
Nós devemos ser ouvidos… e, às vezes, simplesmente dizer não criando um melhor sim.”— David B. Berman, autor do livro “Faça um bom design: como designers podem mudar o mundo”.
Por mais que eu esteja há mais de 5 anos trabalhando com design de experiência do usuário, minha carreira fazendo design começou antes, no design gráfico.
Naquela época, trabalhei em agências de marketing digital e com freelances. Fazia de tudo: artes pra redes sociais, projetos de branding, landing pages, textos pra blogs, copywriting, revisão de textos…
Mas o que eu sempre quis mesmo era usar o design pra além disso. Como uma ferramenta de expressão e mudança social. Até que um dia, durante minha segunda graduação, encontrei pessoas com propósitos iguais aos meus.
Foi assim que nasceu o “Selo Calle” (2018–2020), um coletivo de São José dos Campos formado por pessoas de várias áreas e vivências com os mesmos objetivos: propor o debate sobre assuntos importantes pra sociedade e apoiar a cena cultural e as pessoas que faziam arte na região.

A missão do coletivo era:
“Promover arte e cultura de maneira didática e tangível através da produção de conteúdos e ações interdisciplinares.”
A gente tinha vários “produtos”: revista digital, podcast, blog, entrevistas com artistas da região, eventos e até um projeto de história em quadrinhos com universo próprio.
Cada pessoa do grupo atuava onde mais se sentia à vontade: edição de imagem, áudio ou vídeo, ilustração, roteiros, mediações, planejamento, captação de parcerias, textos, diagramações, revisões e muito mais.
Tudo de maneira independente e sem fins lucrativos.

Em quase 2 anos de vida, foram 20 revistas digitais publicadas, 22 episódios de podcast, 25 artistas entrevistados e divulgados, muitos textos no blog, eventos, palestras, ilustrações e emoções.
Ah, e o mais importante: um senso de pertencimento real com a comunidade local. Uma sensação de estar, mesmo que em pequena escala, ajudando a sociedade. De fazer minha parte como cidadão, sabe?
Com a pandemia chegando forte em 2020 e nosso foco se voltando pra outras coisas, pausamos o projeto. Quem sabe um dia voltamos.
Mas meu ponto aqui é: esse sentimento de pertencimento com a sociedade não deve ser exclusivo de projetos de design sem fins lucrativos, por exemplo. Qualquer designer pode — e deve — se lembrar que antes de qualquer coisa, também é uma pessoa cidadã.
Flavia Neves, no artigo “Contestação gráfica: engajamento político-social por meio do design”, no livro “O papel social do design gráfico”, lembra a gente de uma passagem do designer Nigel Whiteley sobre a existência de uma “visão insular e socializada de designers consumistas que estão condicionados a pensar no design conduzido pelo marketing como a norma, e o design responsável como outra coisa. […] São esses tipos de preconceitos e suas implicações políticas e sociais que confirmam a necessidade de textos sobre design que, propositalmente, desafiam valores e atitudes convencionais.”
Poizé. E esse aqui é um desses textos.
“Design social” e “design thinking”
“Não existe nada de novo na abordagem chamada de design thinking, senão a percepção de que mudam os comportamentos, surgem novos questionamentos.
É uma abordagem que traz consigo o embrião do design social.”— Edna Lima e Bianca Martins, no artigo “Design social, o herói de mil faces, como condição para atuação contemporânea”. Livro: “O papel social do design gráfico”.
Então, se você trabalha com UX, deve achar que essa contribuição social é implícita e sempre acontece. Mas devo dizer que você achou errado, querida pessoa leitora.
O UX design já nasce da necessidade de tornar a usabilidade de um produto ou serviço digital a melhor possível. Ou seja, o conceito de UX é focado em quem vai usar — assim como qualquer outro tipo de design deveria ser — , e essa pessoa, por sua vez, forma a sociedade.
O processo de design thinking, por exemplo, é uma prova dessa centralidade na pessoa usuária explícita logo na base da disciplina.
Mas isso não quer dizer que quem é UX designer tem autonomia pra pensar e agir em prol da sociedade em si. Em alguns casos, critérios básicos como acessibilidade ficam de fora por conta de verba. Em outros, têm verba mas não há tempo hábil ou gente disponível pra pesquisar, estudar e testar os projetos. E quando faltam dados?! Os obstáculos são vários.
Sem contar, claro, que nosso serviço geralmente acaba alimentando toda uma indústria que costuma pensar no lucro acima de tudo. E isso afeta a sociedade. Dados alarmantes sobre desigualdade social, as mudanças climáticas, guerras…
E aqui entramos no campo da ética. Da dualidade. Do bem e do mal.
Heller e Vienne, criadores do livro “O designer cidadão”, que reúne diversos artigos sobre o tema, dizem que “nós criamos uma profissão que acha que preocupações políticas ou sociais são estranhas ao nosso trabalho, ou inapropriadas a ele.”
Eu concordo. Mas ainda dá tempo de mudar isso.
“Diante de todo discurso sobre a ética do design e a necessidade do designer em ser ético, devemos lembrar que os designers, na maior parte das funções nos sistemas de produção, distribuição e consumo, raramente estão no controle da situação.”
— Victor Margolim, em artigo publicado na Revista Design em Foco, da Universidade Estadual da Bahia.
Sei do desafio que é ser ouvido ou ouvida como designer quando trabalhamos em empresas ou projetos que têm fins lucrativos. Muitas pessoas, assim como eu, não conseguem ser sempre considerados ou influenciar nas decisões.
Quando a gente entende a essência do design, fica clara nossa responsabilidade com a sociedade. Como eu já disse no texto anterior, todo design é projeto, mas nem todo projeto é design.
Enfim, a reflexão que quero deixar é: como a gente, que trabalha com design, pode fazer valer a sociedade e o nosso próprio futuro perante o dinheiro também durante nosso expediente?
Se o nome disso é utopia? (risos de nervosismo)
Talvez.
Se quiser conversar sobre esse ou outros assuntos, comenta aqui ou me chama!
Aquele abraço.
Referências
- O Designer Cidadão, Victor Margolin;
- O papel social do design gráfico, Marcos Braga.