Fixação Funcional: Como modelos mentais bloqueiam a criatividade

Sempre usados como referência para solução de problemas, modelos mentais podem ser os vilões do nosso dia a dia.

Fernando Picamilho
UX Collective 🇧🇷

--

Desenho de uma pessoa com olhos fechados e uma esfera laranja com espirais desenhadas em preto saindo da cabeça, simbolizando o pensamento.
Desenho de uma pessoa com olhos fechados e uma esfera laranja com espirais desenhadas em preto saindo da cabeça, simbolizando o pensamento. — Ícone criado por Eucalyp | Flaticon

Imagine o seguinte exercício:

Alguém lhe entrega uma caixa cheia de tachinhas, uma vela e uma cartela de fósforos com apenas uma missão: prender a vela acesa na parede sem deixar a cera pingar na mesa ou no chão.

Como você solucionaria esse desafio?

Itens do desafio: Uma vela, tachinhas dentro de uma caixa e uma cartela de fósfotos.
Itens para o desafio: Uma vela, uma caixa de tachinhas e uma cartela de fósforos.

O que é Fixação Funcional?

Fazendo uma breve busca na internet, descobrimos que:

Fixação funcional é um viés cognitivo que limita a percepção das pessoas fazendo-as repetirem ações preestabelecidas por modelos mentais criados social e culturalmente ao longo da vida.

Ela determina toda a forma de uso de produtos e serviços para as pessoas, dificultando a percepção visual e resolução de problemas de maneiras que fogem do senso-comum.

De uma forma simples, podemos dizer que a pessoa tem um “bloqueio criativo”, impedindo-a de utilizar um objeto para solucionar um desafio de uma maneira que foge a sua função. O mesmo podemos dizer de um serviço quando usado para outro fim que não seja aquele sendo projetado.

Nesse verão eu quero ser só a cadelinha que usa um lava-rápido pra tomar banho nesse gif. Criativa (e fofa), não?

Um pouco de história

O conceito de fixação funcional foi observado pela primeira vez na psicologia da Gestalt (conhecida e utilizada por designers até hoje), pelo psicólogo alemão Karl Duncker.

Duncker não era qualquer psicólogo gestáltico. Ele foi professor assistente dos pais e fundadores da Gestalt: Max Wertheimer, Kurt Koffa e Wolfgang Kohler. O psicólogo morou nos Estados Unidos, onde recebeu o grau de mestre em artes pela Clark University, aos 23 anos.

Duncker foi exilado pelos nazistas e, infelizmente, devido à depressão com a qual lutou por anos, ele cometeu suicídio aos 37, mas nos deixou alguns artigos a falar sobre o assunto. Dentre eles, destaco:

Behaviorismus und Gestaltpsychologie" [Behaviorismo e Psicologia da Gestalt]

The Influence of Past Experience upon Perceptual Properties" [A influência de experiências passadas sobre propriedades perceptivas].

Experimento conduzido por Karl Duncker

Para estudar mais sobre a fixação funcional, o psicólogo criou o teste citado no início do artigo, que analisava a percepção visual e capacidade de racionalizar o uso de objetos fora de seu propósito original.

Em 1952, esse desafio foi aprimorado para o formato que conhecemos hoje, entregando os itens diferentemente a 2 grupos que chamaremos de A e B.

Os itens eram apresentados da seguinte forma:

Itens entregues aos participantes: Grupo A: Uma vela, tachinhas dentro de uma caixa e uma cartela de fósforos. Grupo B: Uma vela, tachinhas entregue fora da caixa, uma cartela de fósforos.
Itens entregues para grupos A e B. Grupo A: Uma vela, tachinhas dentro de uma caixa e uma cartela de fósforos. Grupo B: Uma vela, tachinhas entregue fora da caixa, uma cartela de fósforos.

O grupo A recebia os itens no formato do teste original, com a caixa apenas servindo como um repositório para tachinhas. Essa disposição dificultava enxergar a caixa como um item do processo, afinal, sua função era servir como um repositório para as tachinhas, não como uma ferramenta para a resolução do problema. Isso fazia com que as pessoas do grupo A demorassem mais em suas tentativas de terminar o desafio.

Já no grupo B, a caixa é especificamente posicionada como um item do processo, o que facilita enxerga-la como parte do experimento e não apenas como um repositório para as tachinhas. O grupo B, que recebia 4 objetos no lugar de 3, conseguia solucionar mais rápido por não ter sua percepção visual influenciada pela função que a caixa desempenhava no grupo A.

Solução do experimento. Caixa presa na parede com as taxinhas e vela apoiada dentro da caixa.

A partir deste teste, podemos concluir que a fixação funcional dificulta o processo de resolução de problemas através da percepção visual com ferramentas preestabelecidas, fazendo com que as pessoas não enxerguem um objeto além do seu propósito quando uma função lhe é atribuída. Isso acontece porque quanto mais especializados em alguma ação nós ficamos, maior é a tendência a realiza-la do jeito que conhecemos, os chamados modelos mentais que nós, designers, adoramos bradar aos 4 cantos do mundo de como são importantes, não é mesmo?

Essa é uma grande ironia do processo de criação de modelos mentais. A fixação funcional opera como um atalho para resolver problemas de forma rápida, como na jornada de compra de um site, ou no uso de um mouse. Contudo, ela também nos impede de pensar em soluções que fogem à regra. Quanto maior o sucesso em criar uma solução, mais difícil fica de imaginar uma diferente.

Quem especificamente não tem esse problema? Pessoas que ainda não conseguiram desenvolver modelos mentais.

Crianças de várias idades escorregando no chão gramado ao lado de um escorregador.

Crianças de 5 anos são mais criativas do que você

O experimento de Duncker seguiu como referência mesmo após a sua morte, tendo sido realizado com outros grupos de pessoas de várias idades. Especificamente, crianças com menos de 5 anos foram significativamente mais rápidas do que as mais velhas ao utilizar a caixa de tachinhas para completar o desafio.

No gráfico abaixo, podemos comparar o tempo médio de solução entre as idades:

No gráfico, demonstra-se como crianças de 5 anos solucionam o problema com um tempo médio de 50 segundos, enquanto crianças de 6 e7 anos demoram em média 2 minutos para realizar a tarefa com a caixa cheia de tachinhas. Já com a caixa fazia, crianças de 6 anos demoraram 50 segundos para finalizar a tarefa e crianças de 7 anos demoraram 30 segundos.
Gráfico mostrando a evolução do teste em crianças com 5, 6 e 7 anos apresentando a caixa com ou sem as tachinhas.

Esse estudo nos apresenta dois pontos importantes: primeiro, crianças de 5 anos que ainda não têm a função de objetos cravada em suas mentes, são melhores em enxergar alternativas que fogem do habitual, a visão geral de um problema e sua resolução. Segundo, a fixação funcional é um viés que se fortalece com o passar do tempo como dito no início do artigo. Isso pode ser observado no aumento de tempo que crianças de 6 e 7 anos tem para terminar o teste com as tachinhas na caixa. Ou seja, quanto mais nós nos especializamos em alguma prática ou exercício, mais difícil é enxergar outras formas de fazê-los.

"Nós sempre fizemos assim e nunca deu problema."

— Seu ex chefe

A citação acima soa familiar?

Como se livrar da fixação funcional?

Muitas vezes, os problemas possuem camadas que mascaram seus elementos essenciais, então, precisamos simplificá-los para entender o real problema de um produto ou serviço. Vamos analisar a frase abaixo:

“Durante uma partida de futebol, Ronaldinho estava com muito calor e precisava correr até a área técnica, no meio do campo, para beber água e se refrescar. Porém, toda vez que corria até o meio do campo, sentia mais calor.”

Existem algumas formas de analisar o problema acima. Nesse caso, vamos começar pelo local da água, sempre no meio do campo. Poderíamos espalhar outras garrafas no entorno para fazê-lo correr menos. Ou melhor, poderíamos fazer com que a água chegasse a ele, um gandula de água! Seria maravilhoso, se o problema do Ronaldinho fosse a água.

Nossa primeira intuição é levar água até a pessoa, porque nós a observamos indo em sua direção. Contudo, o problema do nosso jogador não é a ausência de água, e, sim, o calor! Então, com o problema simplificado, podemos utilizar uma técnica chamada de “Como podemos” ou “How might we” em inglês:

Como nós podemos fazer os jogadores sentirem menos calor durante uma partida de futebol?

O problema estruturado dessa forma nos permite pensar em outras soluções, como estádios climatizados, uniformes com tecnologia que preservem a temperatura do corpo e outras coisas.

Mas não custa nada distribuir água no campo inteiro também, né?

Ronaldinho apontando para a cabeça e sorrindo enquanto corre.

Conclusão

A fixação funcional faz parte do nosso desenvolvimento e evolução como seres humanos, seja para o bem ou para o mal. Ao nos depararmos com situações onde temos modelos mentais predefinidos, podemos usar estratégias como as Heurísticas de Nielsen, que abusam desses modelos para nos ajudar a solucionar problemas conhecidos.

Entretanto, ao enfrentar esses obstáculos dentro de nossa zona de conforto, com antigas ferramentas e metodologias, podemos caminhar em direção a um bloqueio criativo, onde a fixação funcional atua como uma grande vilã.

Devemos evitar essa dissonância cognitiva para que um antigo servidor de rede possa transcender a uma mesinha de sala.

Antigo servidor de rede e cabeamento servindo como uma mesinha com uma planta apoiada em cima.
Antigo servidor de rede e cabeamento servindo como uma mesinha com uma planta apoiada em cima.

Quer saber mais sobre modelos mentais? Esse TED com a Clarissa Biolchini explica mais acerca da visão dos modelos mentais no Design nesse mundo complexo de revolução digital do século XXI e como o modelo linear criado na revolução industrial não nos serve mais.

O UX Collective doa US$1 para cada artigo publicado na nossa plataforma. Esse artigo contribuiu para a World-Class Designer School: uma escola de design gratuita de nível universitário, com foco em preparar designers africanos jovens e talentosos para o mercado de produtos digitais local e internacional. Construa a comunidade de design na qual você acredita.

--

--