Magalu e a crítica de design que há cem anos se repete

ana cecilia schettino
UX Collective 🇧🇷
4 min readMay 31, 2020

--

Violência doméstica é caso de polícia. Essa violência, além de traumas, marcas profundas e dolorosas na vidas de milhares de famílias, pode causar a morte de uma mulher. Na maioria dos casos já existia em um cenário violento e, quando ocorre um feminicídio, essa mulher assassinada tinha passado por inúmeras situações de dor.

Campanha 8M 2019 do Magazine Luiza. Imagem: Reprodução / Site.

Desde 2018, o Magazine Luiza cria campanhas sobre violência contra mulheres. Em um primeiro momento, a empresa colou sua robô e garota-propaganda com uma colher na mão e utilizou como slogan hashtag #EuMetoAColherSim. No 8 de março, dia internacional de luta das mulheres, de 2019, incluiu em seu app um um botão de denúncia para casos de violência. A ação utilizou o mesmo slogan do ano anterior, mas trouxe esse item a mais.

Este ano, com o aumento de número de casos de violência devido ao distanciamento social provocado pela pandemia de coronavírus, a loja reforçou a existência do botão em uma nova campanha que utilizou a chamada Ei, moça! Finja que vai fazer uma compra no app Magalu. Lá tem um botão para denunciar a violência contra a mulher. Foi uma ação publicitária que envolveu a funcionalidade já existente no aplicativo. Recursos como chamadas que sugerem discrição, vídeos sem áudio, frases sequenciais em placas e muitos outros já foram diversas vezes utilizado em campanhas contra casos de diversos tipos de violência.

Dada a repercussão da campanha mais recente, a designer Yonara Damasceno, do instagram @lola_poppins_, fez uma sequência de cards explicando o motivo de considerar o botão inútil. No momento, a postagem conta com mais de 90 mil curtidas. Considero, em partes, a crítica de Yonara mais sensacionalista do que reflexiva. Parece faltar o entendimento de que a violência doméstica não será resolvida por um app, mesmo que este fosse o objetivo dele. Nenhuma empresa deveria, nem poderia, criar uma central de atendimento que fosse uma delegacia. Este tipo de denúncia envolve uma rede de atendimento ampla e multidisciplinar. Todo esse questionamento me faz pensar se há uma crítica baseada no conhecimento do funcionamento mínimo das estruturas de atendimento às mulheres. Especialmente por basear-se no fato de que o app direciona a mulher para o número 180, o que é — no mínimo — lógico, mas considerado como inútil na crítica.

Toda a discussão me lembrou também um vídeo da youtuber Jout Jout, chamado Seu textão não chega onde a Fátima chega, e me pergunto: a discussão sobre o botão do aplicativo chega onde o Magazine Luiza chega?

Não sejamos ingênuas de achar que não há um interesse de branding nessa jogada. A campanha pode ser oportunista? Sim, como quase todas. Não sei o que Luiza deseja… Mas por ser empresária, diria que lucro. É o que toda empresa, seja o comércio hipster e bacaninha, mas que pejotiza todas as suas funcionárias ou a grande marca que paga de ambientalmente correta e produz milhares de toneladas de lixo por ano. Capitalismo bonzinho não existe.

Ao mesmo tempo, quando nos damos conta de que vivemos dentro desse sistema destrutivo, tóxico e desigual, gerador de violência e miséria, temos que pensar a nossa profissão dentro desse contexto. Se entendermos o design como “fazer um botão” nunca superaremos a lógica tecnicista que nos é sugerida constantemente. Nem a falsa ideia de isenção nos projetos.

Em muitos espaços aprendemos que é necessário fazer com que tudo seja o mais objetivo, limpo, direto e preciso. Entretanto, a discussão sobre gute form é de, pelo menos, 70 anos atrás. Mies van der Rohe disse que menos é mais em 1930. Infelizmente não acredito que tão cedo superaremos a lógica funcionalista, mas ela não pode ser o nosso artifício eterno.

Lembro-me de Hal Foster, quando diz que o design dos anos 2000 é uma vingança do capitalismo contra o pós-modernismo. Parece que isso continua sendo uma máxima no design digital onde as interfaces devem seguir regras tão estritas de que tudo é sempre igual e necessariamente precisa funcionar da mesma maneira.

No próprio post da designer que fez a crítica há um elemento extremamente questionável: um box com a palavra arrasta e uma seta para a esquerda. Qual sentido faria eu colocar este como o foco da minha análise sendo que a discussão é muito mais abrangente, na verdade, é outra: que nós, como designers não podemos nos restringir a direcionar nossas críticas ao utilitarismo e temos que, de uma vez por todas, entender que em tudo há um contexto e que os processos de comunicação vão muito além da funcionalidade de um aplicativo.

Como designer, professora e militante feminista, realmente fico triste em ver como as disputas na internet são sempre o bem contra o mal, o útil contra o inútil. Esperei, e espero ainda, que possamos discutir o design fora da dicotomia presta ou não presta — que, em teoria, há tempos foi superada. Que possamos fugir da lógica do botão inútil para a lógica da análise de um produto de comunicação divulgado nacionalmente, que contém diversos problemas e contradições.

Ato pela vida de todas as mulheres. Brasília, 2019. Foto: Isabelle Araújo

sugestões de leitura:

Cronograma do homicídio: as 8 etapas seguidas por homens violentos, matéria da BBC

Ciclo da violência, do instituto Maria da Penha

re:verso — Rumo a uma poética do design gráfico no cotidiano digital, artigo de Henrique Burnett Aboud Souza da Eira

Design e crime, Hal Foster

--

--