O ócio criativo em tempos de pandemia

Como passei 30 dias de férias em isolamento social e busquei o equilíbrio entre o corpo e a mente.

Lucas Moreira
UX Collective 🇧🇷

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O quanto não fazer nada te incomoda?

A ideia dessa pergunta é trazer um pouco de desconforto ao tentar respondê-la. Sempre que nos vemos sem um objetivo, consumidos pelo conforto de não fazer nada, caímos drasticamente em um sentimento de culpa, quase como se estivéssemos pecando. E foi com a igreja calvinista que se estruturou a ideia do trabalho como um valor positivo e não um fardo. Max Weber (1864–1920) chamou essa ideologia de ética protestante e, de acordo com ela, só o trabalho, não a compaixão ou a devoção religiosa, levariam à salvação da alma.

O direito ao ócio

A defesa do direito ao ócio enquanto um momento de criação e reflexão do ser humano, se contrapondo à noção de “não fazer nada”, manifestou-se como uma resposta à sociedade industrial que tornou os indivíduos cada vez mais atarefados e presos ao mundo do trabalho.

“A base da teoria marxista desde o seu início era o direito progressivo do trabalhador a apropriação do ócio criativo, fazendo que a sociedade ficasse mais produtiva como um todo.”

E como a Pandemia pode nos afetar?

Em tempos normais a nossa cobrança individual já é um objeto de estudo por si só, mas e em tempos anormais como o que vivemos hoje em dia? Como isso afeta a nossa relação com o trabalho, com a família e os amigos a partir do isolamento que nos foi imposto em prol de um bem maior, que é a segurança e bem estar da população mundial? Bem, infelizmente eu não tenho uma resposta.

Esse é um momento de reinvenção. A forma de se comunicar é o grande trunfo para que possamos minimizar ao máximo os efeitos do isolamento, seja no que tange o trabalho ou a relação com nossos amigos e familiares. Já podemos ver diversas soluções se despontando no mercado, como a ascensão do Zoom ou mesmo a febre das lives nas redes sociais. Mas e a nossa saúde mental, como fica?

Uma pandemia como a do COVID-19 pode abalar a vida de todo mundo. Isolamento social, medo, incerteza com o futuro, o caos econômico, a mudança no ritmo das relações sociais. Esses e outros fatores podem culminar em transtornos como depressão e ansiedade. Tanto é verdade que a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou o guia de saúde mental durante a pandemia.

Como se não bastasse todo esse cenário caótico apresentado, eu tinha 30 dias de férias agendada. Passagens compradas há quase um ano, hotéis pagos e passeios programados deram lugar às incertezas na medida em que a data da viagem se aproximava. Óbvio que em determinado momento eu parei de pensar no "possível" adiamento da tão sonhada e planejada viagem anual de férias e comecei a pensar mais em como eu passaria os 30 dias de férias em casa, em meio a um isolamento social.

O ócio criativo

Acredito que em determinado ponto do meu pré-férias, comecei a pensar em como utilizaria todo esse tempo de uma forma que pudesse ser, ao mesmo tempo, ocioso e criativo. Como eu poderia ter um tempo para mim, para fazer as coisas que eu gosto e que me dão prazer, mas que ao final dos 30 dias eu pudesse olhar para trás e enxergar que o meu ócio foi de alguma forma satisfatório ou prazeroso, ou de preferência um pouco dos dois.

O historiador brasileiro Leandro Karnal defende que:

“Desde que o livro do Paul Lafargue e os livros atuais de Domenico De Masi falam de ócio criativo, do direito à preguiça, nós entendemos que imersos numa situação que eu chamarei de “tarefeira”, apagando um incêndio aqui e outro ali, nós cada vez mais perdemos a noção deste ócio que faz criar; que é diferente de não fazer nada.(…) O ócio criativo é a capacidade de eu me entregar a uma música, a uma atividade lúdica, a um filme, a uma peça de teatro, uma situação afetiva em família, e dali extrair ideias, pensar e me entregar a uma criação que pressupõe maior estabilidade, inclusive emocional. O ócio criativo é fundamental para eu poder trabalhar. Nós estamos cada vez mais workaholics ou worklovers, cada vez mais imersos em atividades que exigem nossa atenção imediata, prática, cronológica. Isso nos torna pessoas cada vez menos produtivas. É preciso o ócio criativo no sentido da capacidade de pensar, ter ideias, estabelecer estratégias e dar passos seguintes, o que é diferente de eu viver imerso nesse oceano de ações cotidianas.”

Chega a soar estranho o fato de que quanto mais eu trabalho menos produtivo eu me torno. No entanto, acredito que esse pensamento é voltado à canalização das nossas energias equivocadamente: isto é, produzir mais nem sempre é a melhor forma de produzir melhor.

O (meu) ócio criativo

Olhando para trás, vejo que nem me programei muito sobre como iria aproveitar o meu tempo livre para colocar em prática algum tipo de atividade, mas eu tinha algumas ideias em mente que me dariam prazer em executar durante esse período de duplo isolamento (social + férias).

Pra começar, a Sympla já vinha rodando em home office desde o dia 13 de março. Imaginando que se tratava apenas de alguns dias, ou no máximo semanas, me instalei na mesa da sala. Eu de um lado e minha esposa do outro. Porém, à medida que as semanas passavam, o isolamento social aumentava e eu via o retorno ao QG da Sympla cada vez mais distante. Dessa forma, busquei na Web alguma plataforma de projetos 3D para tangibilizar um escritório digno de um home office permanente, que trouxesse ao mesmo tempo conforto e praticidade. Encontrei essa belezura chamada Floor Planner, super simples e fácil de usar. Além de passar algumas boas horas buscando referências no Pinterest, também investi preciosas horas na elaboração e concepção do projeto.

Outra frente que me deu prazer de colocar em prática o meu limitado conhecimento foi cozinhar. Na cozinha tentei me reinventar e saí totalmente da minha zona de conforto, principalmente na execução de pratos que envolvam farinha. Acredite se quiser, eu nunca havia feito um bolo ou uma massa de pizza na vida. Dedicar algum tempo na cozinha, buscando receitas diferentes com ingredientes que eu nunca havia utilizado antes foi uma ótima terapia, que me fez passar horas e horas estudando e praticando essa arte milenar.

Também sobrou tempo para uma grande paixão: as plantas. Investi tempo e dinheiro em mudas, arranjos, terra, substrato, vasos e tudo mais que envolva essa forma de terapia. O mais interessante foi me aventurar, mesmo que superficialmente, no mundo da carpintaria — lixando, pintando e envernizando um belo (pelo menos para mim) jardim vertical.

Mas se engana quem pensa que eu não investi tempo na minha carreira. Participei como palestrante e assisti lives sobre mercado, ouvi bastante podcasts sobre Product Design, Product Management e histórias de profissionais que resolveram compartilhar um pouco do seu tempo para boas discussões sobre o momento que vivemos e como poderá ser o “novo normal”, como dizem por aí.

Além disso, maratonei séries, tentei de alguma forma colocar a leitura em dia, seja com livros ou artigos que estavam salvos no meu bookmark mas que eu não havia tido “tempo” para visitá-los.

E fiz nada.

Porque fazer nada é importante.

Apenas deitei na rede da minha varanda e contemplei o céu…

Este texto já foi produzido no meu novo escritório, ao som de Radiohead e Zaz.

Lembrando que, se puder, #FiqueEmCasa.

The UX Collective donates US$1 for each article published in our platform. This story contributed to UX Para Minas Pretas (UX For Black Women), a Brazilian organization focused on promoting equity of Black women in the tech industry through initiatives of action, empowerment, and knowledge sharing. Silence against systemic racism is not an option. Build the design community you believe in.

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