Quem somos nós: uma lupa sobre as competências em design
Buscando oportunidades para discutir competências profissionais na formação e contratação de designers.
Mais de 250 anos separam a primeira Revolução Industrial da consolidação da Economia de Dados, respectivamente um dos marcos da atividade de design e seu atual estágio evolutivo. No período compreendido por estes eventos, o designer teve sua atuação e decorrente impacto discutido, experimentado e, enfim, verificado sob os mais diferentes contextos. Hoje, esse profissional encontra espaço de atuação favorável em negócios, segmentos e cenários igualmente distintos, dada sua agilidade de trânsito e diálogo com e entre áreas multidisciplinares.
Mas essa complexa práxis também trouxe consigo divergência, superficialidade e imprecisão na definição dos limites de emprego das operações e estratégias de design — sim, os limites existem — e não raramente o campo é tido como uma panaceia.
Essa aparente facilidade de aplicação e garantia de sucesso pelo design e suas ramificações criaram problemas em duas frentes fundamentais: a formação do designer e seu recrutamento no mercado de trabalho.
Formando designers hoje
MOOCs, bootcamps, MBAs, masterclasses, bacharelados ou tecnólogos. São muitas as opções para se trilhar um percurso formativo no design hoje em dia. Menos de 20 anos atrás a escolha era entre uma habilitação em projeto de produto ou programação visual — e isso para aquelas pessoas que conseguiam entender o que era uma graduação em “desenho industrial”.
Independente da modalidade de formação, o que está por trás de cada uma delas é a proposta de construção de um conjunto de competências específicas que objetivam capacitar o novo profissional para atuar em um determinado mercado. Na formação acadêmica essas competências são relativamente bem delimitadas pelo maior órgão educacional do governo brasileiro, mas nos cursos de formação continuada muitas vezes se prioriza um título de impacto para a proposta e a abordagem de temas que são trend topics na comunidade, desconsiderando a importância de clarificar para seus estudantes quais competências serão obtidas na conclusão do curso. Assim estamos formando designers que pouco conhecem sobre suas limitações e potencialidades profissionais; são generalistas em um mundo de especialistas, mas raramente conscientes e críticos quanto à sua performance.
Recrutando designers hoje
Toda essa nebulosidade quanto às competências em design obviamente impactaram na absorção dos profissionais da área pelo mercado. Navegar rapidamente pelas oportunidades de trabalho postadas no LinkedIn pode ser uma jornada ao mesmo tempo trágica e cômica para os novos profissionais, tamanha falta de clareza sobre as competências exigidas pelos recrutadores (ou você acha normal especificar como atributos de uma mesma vaga conhecimentos sobre programação e confecção de mail-marketing; ou ser contratado sob o título de “Designer UX / UI”?).
A velocidade de transformação do mercado, das tecnologias e do modelo mental dos consumidores ditam o ritmo com que as competências esperadas dos profissionais de design precisam ser desenvolvidas, o que também contribui na dificuldade de mapeamento das necessidades da empresa vs. as atribuições esperadas dos designers em seleção. Assim, o comportamento paradigmático dos recrutadores — incluindo nesse papel os gestores em design — muitas vezes é copiar de empresas referência as especificações do perfil esperado.
O problema? a replicação de atribuições deslocadas do seu contexto original, o que faz com que a comunidade por vezes busque sustentação em modismos instrumentais ou comportamentais que não se encaixam na cultura e no negócio do contexto de destino. Essa condição é avessa ao princípio básico das competências em qualquer área: elas precisam ser contextuais, ou seja, adaptadas, empregadas e avaliadas sob uma ótica realista sobre a qual é possível interferir individual e, principalmente, coletivamente.
Do que são feitos os designers
O problema das competências abordado nos dois tópicos anteriores é bastante aprofundado quando se transversaliza a variável ‘inovação’. Palavra de ordem em projetos pedagógicos e descrições de perfil profissional, a inovação como premissa ou resultado raramente tem seu trajeto desenhado claramente, o que faz com que acabe aparecendo nesses registros mais para atender a um protocolo subjetivo do mercado na adoção de termos e conceitos emergentes do que objetivamente como uma característica estruturada no perfil dos profissionais de design.
Essa constatação me fez mergulhar no complexo universo das competências do design orientada para a inovação por 4 anos com um estudo de doutorado que buscou encontrar os pontos de contato entre algumas empresas orientadas pelo design, suas práticas de inovação, e a formação de 106 designers formalmente treinados e atuantes no mercado. O resultado foi a identificação de 5 dimensões de competências e diversas constituintes que as sustentam e tornam mais visíveis sua composição e articulação no perfil dos designers.
Habilidade
Um dos pontos mais elementares das competência em design, é através da habilidade que se manifesta o potencial individual que diferencia um profissional do outro de forma tão latente: o resultado final de um projeto. Profissionais recém-formados ou em formação costumam dar bastante atenção e valor para representações minuciosamente técnicas, pois esses outputs são facilmente percebidos como diretamente proporcionais à habilidade do designer.
No entanto, esse tipo de habilidade é atingível por todos, pois sua característica principal é a de ser um atributo que pode ser desenvolvido através de treinamento prático, da mesma forma que é possível incrementalmente melhorá-la mediante exercícios gradualmente mais exigentes e complexos, como um músculo que precisa ser continuamente desafiado.
Nigel Cross diz que a habilidade em design é originária da confluência de três campos: arte, ciência e tecnologia. Do ponto de vista da arte, o designer adquire em sua formação aspectos que o favorecem em relação a habilidade de construção de críticas frente aos artefatos. Da ciência, o design adotou o espírito investigativo, e da tecnologia, a capacidade de construir e buscar meios para otimização de processos. Assim, é possível listar como constituintes da competência “habilidade” a investigação, análise do problema, síntese, colaboração e gestão de projetos, basicamente o que pressupõe modelos como o seminal “Double Diamond”.
Conhecimento
O design tem se expandido com sucesso de e para outros domínios, no entanto, com um custo: não raramente as compreensões sobre o conhecimento em design permanecem trancadas dentro de especificidades das práticas em questão, e o resultado é uma compreensão segmentada sobre o que constitui o conhecimento em design.
Na visão do teórico Joan Van Aken, essas segmentações são encaradas como categorias de conhecimento, sendo dividido em: object knowledge, ou conhecimento sobre objetos, atributo que busca dar conta das características e propriedades dos artefatos e seus materiais; realization knowledge, ou conhecimento sobre realização, atributo que contempla os diversos processos físicos a serem utilizados para realizar artefatos; e process knowledge, ou conhecimento sobre processos, atributo que aborda as características e propriedades dos processos de design que podem ser utilizados na produção de artefatos.
Experiência
A experiência é a familiaridade adquirida da observação e prática no curso de ação do indivíduo como designer. Esse curso de ação pode ser desempenhado de diversas maneiras frente aos diferentes níveis de problemas em design, sendo o projeto o meio mais comum, presumindo o emprego de metodologias e princípios de trabalho na solução de problemas. Porém, a cópia, tentativa e erro, intuição e até mesmo o “acaso” podem ser geradores de algum nível de experiência, no entanto, com diferentes níveis de impacto sobre problema enfrentado.
Define a experiência em design, portanto, a instância adotada pelos designers no enfrentamento dos problemas de projeto a medida que se evolui o pensamento/ raciocínio simplista para o complexo, que pode ser categorizado em três macro posições: dualismo, multiplicidade e engajamento no relativismo. De acordo com essa teoria, domínio do conhecimento é inicialmente abordado de uma maneira dualista: a resposta é certa ou errada. Esse dualismo depois dá lugar uma consciência de que existe um conjunto maior de soluções para questões intelectuais e éticas em um contexto de relativismo. O mundo do designer se desenvolve como um lugar obscuro, e “tons de cinza” emergem, e a urgência em eliminar o caos interno resulta na formação de princípios pessoais, o que caracteriza a construção de experiências mais complexas. Assim, enquanto o estudante dualista precisa uma resposta certa para um problema aberto, o multiplicista vacila entre opções diversas.
Atitude
Designers com atitudes condizentes ao mundo atual são caracterizados por serem abertos à reavaliação, adaptação e renúncia ou desapego das soluções geradas por eles mesmos. Além disso, tendo uma perspectiva aberta, ser orientado ao mercado, ser aberto ao aprendizado, ser capaz de lidar com críticas, desenvolver boas habilidades comunicacionais — ouvir e questionar — e pensamento lateral são atitudes importantes para qualquer designer.
A atitude nas competências em design está diretamente relacionada ao campo dos valores, considerando novamente seu enquadramento em arte, ciência e tecnologia. Nesse sentido, a atitude em design, pelo viés das artes, promove a capacidade de desenvolver comportamentos passivos e ativos com relação à subjetividade, imaginação, comprometimento, preocupação com justiça; da ciência, a atitude em design se manifesta pela objetividade, racionalidade, neutralidade, preocupação com a verdade no percurso do desenvolvimento do artificial; e da tecnologia, a preocupação com a praticabilidade dos processos, métodos e soluções desenvolvidas.
Em linhas gerais, entende-se as atitudes em design como comportamentos adaptativos que o designer constrói ao longo do ser percurso formativo como estudante e profissional, sendo possível destacar o compartilhamento de conhecimento, a autenticidade em defender aquilo em que acredita, autoconfiança para conduzir, entregar e defender seus projetos e ideias, a motivação inexorável e mente aberta para aceitar diversidade e divergência no ambiente de projeto.
Assim, é possível constatar que as atitudes de design influenciam a performance de um designer em muitas formas, ativa e passivamente, e geralmente não podem ser consideradas um atributo inato.
Capacidade
Objetivamente, capacidade diz respeito à quantificação na absorção das demais competências, ou seja, o quanto uma pessoa consegue desempenhar uma competência com excelência. São difíceis de ser mensuradas ou capturadas pela sua natureza abstrata, e de certa forma, é possível sugerir que a capacidade em design é uma forma de inteligência natural, o que equivocadamente chamamos de “dom”, pois apesar de inata ela também pode ser desenvolvida.
Importante frisar que esses níveis de competência não devem ser tomados como caracterizações completas de uma pessoa e sua personalidade, e todos eles podem coexistir dentro de um único projeto de design: designers podem simultaneamente mostrar comportamentos como seguidores de regras e máximas dos principiantes em algumas partes de seus trabalhos, bem como mostrar comportamentos de interpretação e reflexão que caracterizam os níveis mais altos de competência em outras partes do projeto, como em seu planejamento ou gestão. O problema, talvez, seja encontrar conforto e comodidade em apenas um deles, tanto o mais baixo quanto o mais alto, nunca pensando em evoluir ou transitar por diferentes princípios projetuais face aos diferentes problemas que serão enfrentados.
Concluindo
Independentemente de sua plenitude, não é possível estabelecer competências universais no campo do design, mas apenas competências que são desenvolvidas de acordo com certas necessidades por atividades, pois o design pode aparecer com formas, objetivos e em contextos diversos, da mesma forma que os problemas que os circundam.
Voltando variável “inovação”, depois de conhecer o processo de projeto de 106 designers foi possível concluir que existem seis constituintes que são balizadoras da atividade inovadora em design, representadas bastante superficialmente na figura abaixo.

Para além das posições júnior, pleno ou sênior, é preciso que todos os atores da comunidade de design tenham consciência sobre qual o nível de competência esperado em cada uma dessas posições, lembrando que esse não deve ser um desenho inerte, imutável, e aí está a complexidade e a beleza das competências: sua organicidade e dificuldade de mensuração e controle. Mas se entendemos a importância do papel do designer na articulação da sociedade, da política e economia, e da tecnologia na construção de um mundo mais justo, então vale a pena mergulhar nessa complexidade.
p.s.: Se você tiver interesse em conhecer mais detalhes do meu estudo, lhe convido a acessar minha tese aqui.