UX Writer, se posicione!
Sobre o nosso papel social e moral de abraçar e defender o plural e o justo num país egoísta e injusto.

“[…] Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.
Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”
— Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Vol. I, Fernando Pessoa
A língua é um instrumento de poder
Aprendemos na aula de história que, ao longo das décadas, povos originários foram sendo dizimados e apagados por seres humanos “evoluídos” e que pensavam no “progresso”. Mas espera aí: progresso de quem e pra quem?
Em nosso país sul-americano preferido — o Brasil, claro — temos o exemplo perfeito: fomos colonizados por Portugal, que por sua vez obrigou a população originária a aprender e falar a língua portuguesa. Cá estamos nós, certo?
Perceba que, lá no momento da colonização, a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa era simplesmente uma manobra de poder: quem fala e escreve em português, manda. Pronto, simples assim.
E, desde então, a língua faz parte da manutenção desse poder. Claro, não exclusivamente. Mas faz parte da conta social que diz se você pode ou não pleitear uma posição de “maior prestígio”, por exemplo. O nome disso é preconceito linguístico.
No artigo “O que é preconceito linguístico?”, Niva diz que o preconceito linguístico também é um preconceito social: “Contra quem o preconceito linguístico se volta? É contra o médico? Não, é contra o mecânico que fala “peleumonia”. A fala correta, formal que se exige em entrevistas de emprego é a fala do caipira, é a gíria, é o sotaque do nordestino? Não, e isso não é coincidência. Não é coincidência que o português errado seja o português do povo. Se a língua é uma ferramenta de dominação, a língua correta é a língua da classe dominante. E essa é a língua ensinada na escola.”
Bom, e se a “língua certa” é ensinada em um local que nem todo mundo tem acesso, já dá pra imaginar o resultado.

Junta tudo isso com a desigualdade social e racial, com o machismo, com o etarismo…
“Achar que basta ensinar a norma-padrão [da língua portuguesa] a uma criança pobre para que ela ‘suba na vida’ é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na rua e de vagas na penitenciária para resolver o problema da violência urbana.
[…] É preciso garantir, isso sim, o acesso à educação em seu sentido mais amplo, aos bens culturais, à saúde e à habitação, ao transporte de boa qualidade, à vida digna de cidadão merecedor de todo o respeito.”
— Preconceito linguístico, de Marcos Bagno; p. 106
Enfim, o buraco aqui é fundo…
O design é, e sempre foi, político e social
Não sei se você já se atentou a isso, mas um dos primos do design de experiência — o design gráfico — foi crucial pra consolidar muitas das mudanças sociais, políticas e culturais que tivemos no mundo ao longo das últimas décadas.
Movimento “Atelier Populeire” (França)
O Atelier Populaire, por exemplo, foi um movimento formado em 1968 por estudantes, artistas e trabalhadores franceses que fizeram da Escola de Belas Artes de Paris o seu ponto de encontro. Lá, o design era a arma: cartazes e comunicações eram confeccionadas na luta pela reforma nas universidades e contra às condições de trabalho precárias da época. E adivinha: conseguiram.
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Movimento “Black Panthers” (EUA)
Outro exemplo de movimento que se alimentou da força do design foram os Panteras Negras. Seus cartazes e jornais ajudaram na luta e propagação dos direitos humanos nos Estados Unidos e são usados como referência em lutas sociais até hoje.

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Movimentos contra a ditadura militar (Brasil)
O artigo “Um olhar sobre o papel social do design gráfico na ditadura civil-militar no Brasil (1965–1985)”, da UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais), diz que “[…] em meio ao endurecimento da censura aos meios de comunicação, espalhavam-se manifestações contrárias ao regime, com diferentes formas e linguagens. Melo (2008) aponta que, tanto na cultura quanto nas artes, os anos 60 foram movimentados, sendo perpassados pela censura e por ânimos acirrados. Na visão do autor, “misturar política e cultura foi a marca da época. A arte foi amplamente adotada como instrumento de militância social” (MELO, 2008, p. 34).”
“Mas Gabriel, UX Writing não tem nada a ver com design gráfico e lutas sociais!”
Como não?!
No artigo “Com design, além do design: os dois lados de um design gráfico com preocupações sociais”, que tá no capítulo 3 do livro “O papel social do design gráfico”, Rafael Miyashiro lembra a gente que o design é amplo, com várias frentes, e que cada uma tem seu papel político, moral e social.
“[por sua vez] o design de informação, com seu foco na aquisição de informação pelo usuário, utiliza as mais diversas ferramentas e metodologias para realizar um processo de comunicação eficaz. A ergonomia já não se restringe a aspectos pragmáticos envolvidos no design gráfico e de produto, mas também considera o homem de forma mais holística, como ser racional e emocional.
[…] o caráter multidisciplinar, algo tão enraizado no design, se mostra um elemento fundamental na busca de soluções de um mundo mais humano e socialmente justo.”
Ou seja, como UX Writers, também podemos contribuir pra esse “mundo mais humano e socialmente justo”. E nossa arma é a língua portuguesa.
O texto que você produz tem o poder de ajudar não só a empresa em que trabalha, mas também o de evitar danos inesperados (financeiros, por exemplo) a quem usa seu produto ou serviço. Tem o poder de incluir ainda mais pessoas, de aflorar sentimentos bons e de minimizar os ruins. É uma arma poderosa.
Pensa comigo: vimos que a língua é um instrumento de poder, usado desde a antiguidade tanto pra unir, instruir e protestar quanto pra segregar, classificar e rotular. Isso quer dizer que, querendo ou não, a gente trabalha com toda essa essa responsabilidade.
Por isso, se posicione. Defenda a transparência nos produtos e serviços em que trabalha e lembre sempre que temos um papel importante na construção de uma sociedade melhor.
Voltando pra poesia do início do texto, Fernando Pessoa diz: “minha pátria é a língua portuguesa”. Então, deixo a pergunta: vamos construir uma pátria melhor, sem preconceitos e mais inclusiva?
As pessoas que usam seu produto, a sua empresa e o nosso Brasil — plural, tropical e bonito por natureza — agradecem.
Referências
- O que é preconceito linguístico?, de Niva
- O papel social do design gráfico, de Marcos da Costa Braga
- Preconceito linguístico, de Marcos Bagno
- Linguagem Simples e o comunicado no elevador